Nem o mais pessimista dos videntes pôde prever a calamidade que tomaria conta dos noticiários: a descoberta de um novo coronavírus, batizado de Sars-Cov-2, virou a preocupação mundial de 2020.

As notícias sobre o tema começaram a circular nas  últimas semanas de 2019, quando médicos notificaram um aumento do número de crises respiratórias na cidade de Wuhan, na China.

Poucos dias depois, já se sabia que o quadro misterioso era provocado por um tipo desconhecido de coronavírus, da mesma família de agentes que estiveram por trás das epidemias de SARS (sigla para síndrome aguda respiratória grave), em 2002, e MERS (síndrome respiratória do Oriente Médio), em 2012.

A doença provocada pelo novo Coronavírus é oficialmente conhecida como COVID-19, sigla em inglês para “coronavirus disease 2019” (doença por coronavírus 2019, na tradução).

Do leste chinês, o vírus em pouco tempo se espalhou rapidamente pelo globo terrestre, até que em 25/02/2020 foi noticiado o primeiro caso comprovado no Brasil, mais precisamente na cidade de São Paulo.

Menos de 20 dias depois, a OMS decretou pandemia mundial provocada pelo Sars-Cov-2; e acompanhando a ampla disseminação mundial, o vírus se espalhou rapidamente também em solo brasileiro.

Na data de redação do presente artigo, as secretarias estaduais de saúde contabilizam 372 infectados em 19 estados e no Distrito Federal. Último balanço oficial do Ministério da Saúde aponta 291. A primeira morte foi registrada no estado de São Paulo.

Médicos infectologistas e especialistas sanitários dão declarações que beiram o pessimismo: ainda não há cura conhecida apesar do incansável trabalho de pesquisadores, e, eventual vacina, quando e se descoberta, demandará meses para ser produzida em volume necessário para a demanda mundial. Não se sabe quanto tempo permaneceremos no centro da pandemia do coronavírus! Qualquer afirmação em sentido contrário será mero palpite.

Visando o combate e o controle da COVID-19, medidas têm sido anunciadas pelos governos federal, estaduais e federais, dentre elas, orientação de quarentenas ou isolamento voluntário, facilitação de aquisição de insumos médicos/farmacêuticos, e incentivos financeiros.

Até o presente momento, no entanto, nenhuma medida foi tão polêmica como a medida anunciada pelo Governador do Estado de São Paulo, João Doria, nesta quarta-feira (23/03/2020), determinando o fechamento de todos os shoppings centers (e academias de ginástica) da capital paulista e da região metropolitana de São Paulo para deter a prorrogação do vírus. Aos proprietários foi concedido exíguo prazo para que tomem as providências cabíveis e fechem os estabelecimentos a partir da próxima terça-feira (24), e assim os mantenham, pelo menos, até o dia 30 de abril, ou seja, pouco mais de um mês.

O anúncio causou preocupação não só aos proprietários dos estabelecimentos mencionados pelo governador paulista, mas aos empresários dos mais diversos segmentos, isso porque é esperado que nos próximos dias medida semelhante seja anunciada para outros tipos de organização em que pode haver aglomeração de pessoas.

O fechamento de um estabelecimento, independente do tamanho de sua estrutura, produz  efeitos econômicos imediatos e devastadores, afinal, com o mercado paralisado, onde os empresários encontrarão recursos para persistir em atividade?

Um das maiores preocupações diz respeito aos trabalhadores. Como proceder com eles? Até quando os empregadores conseguirão sustentar a folha de pagamento? Além dos custos com matéria prima, fornecedores, impostos e taxas, as obrigações com salários, férias, depósitos do FGTS, contribuições previdenciárias, são inadiáveis. Empregados dependentes do emprego não têm condições de suportar atrasos.

A demissão deles não se mostra razoável, seja porque o empregador não deseja tal medida extrema, seja porque o custo com a dispensa imotivada trará passivo (na maioria das vezes) insuportável.

Não há no ordenamento jurídico pátrio regulamentação trabalhista de crise, por isso tem-se que trabalhar com a interpretação das previsões existentes na CLT e leis trabalhistas esparsas.

Inicialmente, uma dos primeiros pensamentos que surgem é que o surto de coronavírus é uma força maior, instituto jurídico presente no ordenamento pátrio há muito tempo.

No Código Civil ela é objeto do artigo 393, cujo texto afirma: “O devedor não responde por prejuízos resultantes de caso fortuito ou de força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado”. Verifica-se a força maior, diz o parágrafo único, “no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir”.

A Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), por sua vez, dedica seu capítulo VIII à força maior.  Define o artigo 501[1], como força maior, “todo acontecimento inevitável em relação à vontade do empregador, e para o qual este não concorreu, direta ou indiretamente”.

A pandemia do coronavírus era imprevisível e era irresistível. Não respeita fronteiras e se alastra com velocidade, assim, ainda que a força maior tenha no direito do trabalho conceito peculiar e mais nebuloso do que em outros ramos jurídicos, porque visa a proteção integral do empregado, entende-se que aplicável na atual conjuntura de crise.

Considerando, portanto, que estamos diante de um caso de força maior, passemos à discussão de quais medidas podem ser adotadas pelo empregador.

 A CLT, em seu artigo 503[2], admite a redução de salários em caso de força maior, “proporcionalmente ao salário de cada um, não podendo, entretanto, ser superior a 25%, respeitado, em qualquer caso, o salário mínimo da região”.

 E não só a Consolidação traz tal previsão: a Lei 4.923/1965, conhecida à época como “lei de crise”, prevê a redução temporária de salários, mediante negociação coletiva, na empresa que “em face de conjuntura econômica, devidamente comprovada”, se encontrar diante de dificuldade insuperável.

De igual forma, a Lei. 13.189/2015, resultante da conversão da MP 680/2015 em lei, e que instituiu o Programa de Seguro Emprego, também previu a possibilidade de redução salarial em tempos de crise.

Como se vê, a redução salarial poderá representar uma opção aos empregadores para evitar demissões e conseguir cumprir com suas obrigações trabalhistas, em especial o pagamento da folha de pagamento, no entanto, vale registrar que, embora a CLT não mencione tal obrigatoriedade, mas considerando o histórico legislativo — e especialmente  a previsão do art. 7º, VI, da Constituição Federal de 1988[3] —, não é recomendável que o empregador adote a redução salarial sem a realização de negociação coletiva com o órgão de classe dos empregados.

Caso o sindicato representante dos empregados se negue a negociar apesar de comprovada procura da empresa, poderão os trabalhadores (coletivamente) e o empregador valerem-se da negociação direta como única forma de validar o instrumento de negociação almejado, é o que garante o art. 617 da CLT.

Outro aspecto a se considerar no atual cenário é a possibilidade de o empregador invocar em sua defesa o “factum principis” — ou Fato do Príncipe, em português —, principalmente nos casos em que a dispensa dos empregados for inevitável.

O Fato do Príncipe, instituto frequentemente utilizado no direito administrativo e pouco lembrado no ramo trabalhista, possui, sim, previsão na CLT, em seu artigo 486[4], cujos termos estabelecem que o “factum principis” caracteriza-se pela paralisação temporária ou definitiva do trabalho, em virtude da prática de ato administrativo por autoridade pública federal, estadual ou municipal, ou pela promulgação de lei ou resolução, ou seja, por ato legislativo, que impossibilite a continuação da atividade;

Trata-se de uma espécie do gênero força maior, sendo necessária a presença dos seguintes requisitos para sua configuração: a) ato administrativo ou legislativo inevitável praticado por autoridade competente — não necessariamente ordenndo o encerramento das atividades, mas que apenas dê motivos para tanto, e nesse caso a continuidade da atividade implicará prejuízo —; b) paralisação definitiva ou temporária de trabalho; c)e não concorrência, direta ou indireta, do empregador para a prática do ato.

A lei determina que diante de um ato caracterizado como Fato do Príncipe, o agente público é o responsável pelas indenizações trabalhistas decorrentes de seus atos, ou seja, é uma exceção à regra de que o empregador deve arcar com todos os riscos provenientes da prestação de serviços, mesmo ocasionados por força maior.

Registre-se apenas que, como o dispositivo legal afirma que o pagamento da indenização ao trabalhador ficará a cargo do governo responsável, boa parte da jurisprudência entende que a responsabilidade da  Administração Pública está limitada à indenização adicional do FGTS (40%) e ao aviso prévio indenizado, sendo as demais verbas serão de responsabilidade dos empregadores, vez que “indenização” não se confunde com a totalidade das verbas rescisória

Como se vê ninguém estará imune aos impactos da atual crise, tanto empresas quanto trabalhadores sentirão seus efeitos. O presente trabalho não esgotou as medidas jurídicas que poderão ser adotadas no âmbito das relações de trabalho, mas buscou demonstrar que, dentro dos limites da legalidade, tudo deve ser feito para superar ou reduzir a crise, com o menor número possível de baixas e de prejuízos Devemos pensar em certos compartilhamentos de responsabilidades e saber que o ônus será de todos.


[1] Art. 501 – Entende-se como força maior todo acontecimento inevitável, em relação à vontade do empregador, e para a realização do qual este não concorreu, direta ou indiretamente.

§ 1º – A imprevidência do empregador exclui a razão de força maior.

§ 2º – À ocorrência do motivo de força maior que não afetar substâncialmente, nem for suscetível de afetar, em tais condições, a situação econômica e financeira da empresa não se aplicam as restrições desta Lei referentes ao disposto neste Capítulo.

[2] Art. 503 – É lícita, em caso de força maior ou prejuízos devidamente comprovados, a redução geral dos salários dos empregados da empresa, proporcionalmente aos salários de cada um, não podendo, entretanto, ser superior a 25% (vinte e cinco por cento), respeitado, em qualquer caso, o salário mínimo da região.

[3] Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:

[…]

VI – irredutibilidade do salário, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo;

[4] Art. 486 – No caso de paralisação temporária ou definitiva do trabalho, motivada por ato de autoridade municipal, estadual ou federal, ou pela promulgação de lei ou resolução que impossibilite a continuação da atividade, prevalecerá o pagamento da indenização, que ficará a cargo do governo responsável

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